As "doenças de inverno" que habitualmente lotam os serviços dos hospitais ainda não chegaram, mas no de São João, no Porto, há alas esgotadas devido à "pressão" da Covid-19, algo que os especialistas veem com "muita preocupação".
"Sabíamos que a pressão ia acontecer nesta altura do ano por causa das doenças respiratórias. O nosso inverno normal é assim. Já tínhamos doentes a mais, já tínhamos de gerir as camas até à exaustão. Agora há doentes que necessitam de isolamento, o que obriga a que não estejam juntos. Estamos em outubro e vem pela frente novembro, dezembro, janeiro e fevereiro. A mudança de temperatura, por si só, descompensa as doenças crónicas que estiveram muito afastadas dos cuidados de saúde", refere o diretor do Serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ).
Jorge Almeida dirige o maior serviço de Medicina Interna do país, com mais de 200 camas e, enquanto falava à Lusa, necessitou de atualizar duas vezes a informação sobre o número de internados, depois de ter visto o serviço ficar cheio entre sexta-feira e domingo.
Na terça-feira, este hospital, que ativou o nível três do plano de contingência a 13 de outubro, acolhia 120 doentes, 25 dos quais em cuidados intensivos.
Subir ao terceiro patamar da contingência significa abrir camas para doentes Covid em áreas habitualmente reservadas a outras patologias, reorganizar serviços e a possibilidade de adiar até 20% das cirurgias.
No Serviço de Medicina Interna, este nível três traduz-se em "58", o número de camas que pode ser alocado a doentes com infeção pelo novo coronavírus.
"Com áreas médicas cheias, os doentes terão de passar para áreas cirúrgicas. Vamos manter uma produção cirúrgica exuberante? Penso que não. É de todo impossível", refere Jorge Almeida, falando em "aumento bombástico" de pessoas com sintomas ou testes positivos Covid-19.
Quatro pisos acima, no serviço de Medicina Intensiva e numa unidade antes dedicada a cuidados intensivos para doentes neurocríticos, que a pandemia transformou em área exclusiva para doentes com infeção Covid-19 grave, é igual a inquietação.
"Quando são reportados casos aos milhares por dia, a preocupação é muito grande. Quando esta unidade abriu, em poucos dias ficou cheia. Já demos altas e as camas foram logo ocupadas", conta à Lusa Nuno Príncipe, coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos do piso 8 dedicada à Covid-19.
O médico de medicina intensiva está nestas funções há 10 dias, altura em que foi adaptada esta ala, por ter camas equipadas que permitem ventilar doentes Covid-19.
O nível três do plano de contingência prevê que a Medicina Intensiva "empreste" cerca de 50 camas de outras patologias à Covid-19. Se o São João passar ao quarto patamar da contingência, a capacidade dobra.
"A preocupação é imensa. Imagine-se que, neste inverno, o número de casos em maior quantidade começa em dezembro. Imagine-se chegarmos a dezembro com as unidades quase cheias como estão agora", alertou Nuno Princípe.
"Há doentes que sabemos que vão chegar, como o doente respiratório, as pneumonias víricas não Covid ou as infeções respiratórias bacterianas e, com este aumento, a resposta a dar vai ficar muito comprometida", acrescentou.
O médico frisa que "não há neste momento cirurgias canceladas em doentes neurocríticos" e que a Medicina Intensiva continua a dar resposta a pacientes não Covid, apontando para "as seis camas ventiladas" existentes naquele piso.
Se começarem "a entrar muitos doentes [Covid-19 para cuidados intensivos], estas seis camas podem-se transformar-se também".
"Aí, a resposta às cirurgias não sei se será possível. Mas estamos cá", disse.
Nuno Príncipe recorda que "está por vir o pico do inverno, que varia habitualmente entre dezembro e março".
"Representamos o fim de linha. Isto é mesmo o fim de linha e não é um fim de linha ilimitado. Estamos claramente acima do habitual e os recursos são finitos", aponta, indo ao encontro de uma preocupação que já na visita à Medicina Interna, a enfermeira chefe, Graça Silva, tinha partilhado à Lusa.
"Já tenho gente contaminada que foi ou não foi contaminada aqui, mas estão em casa", disse a responsável.
"Preocupa-me arranjar pessoas para trabalhar", desabafa Graça Silva, fazendo contas ao número de enfermeiros com que pode contar.
As escalas tinham cinco enfermeiros de manhã e quatro à tarde e à noite. Agora, cada turno foi reforçado com um profissional.
"Cada dia é um dia. Não posso pensar como é que será daqui a quatro ou cinco dias", diz Graça Silva, enfermeira no São João há 40 anos, certa de que nunca terá um inverno tão longo e difícil como o próximo.
Já Rosa Moreira, nas mesmas funções em Medicina Intensiva, aponta que "tudo pode ser feito até um limite", preocupando-se por ver os números "aumentar de forma assustadora".
"O comportamento lá fora tem repercussões cá dentro. Apelo a que as pessoas cumpram as medidas de distanciamento físico, etiqueta respiratória, uso de máscara. É fundamental que sejam cumpridores para que os hospitais consigam dar a resposta necessária", avisa.
De acordo com dados atualizados até terça-feira, o São João registou, em outubro, uma média de atendimentos no Serviço de Urgência de 449 por dia, 81 dos quais suspeitos Covid-19 confirmados ou não.
O aumento de casos começou a fazer sentir-se mais a partir de dia 20, altura em que foram atendidos na tenda ou nos contentores da "linha da frente" da urgência sempre mais de 195 suspeitos de infeção pelo novo coronavírus.
No domingo, foram 251 os casos suspeitos atendidos, algo que, em anos anteriores, só se registou no mês de janeiro, e sem pandemia.
"Sabemos que o SARS-CoV–2 entrou em março aqui e não saiu. Muitos de nós não falam em vaga (…). Ao contrário da primeira fase, doentes não Covid-19 não abandonaram dos cuidados de saúde. Não temos o dom da ubiquidade. Não conseguimos estar em dois lados ao mesmo tempo. O que garanto é: ninguém deixa de ser tratado", conclui Jorge Almeida.
A experiência acumulada nos meses de março a maio com a pandemia já permitiu libertar profissionais de vários procedimentos, mas o Hospital de São João, no Porto, avisa: a rede tem de estar organizada e não existe só Covid-19.
"Em março tínhamos uma ideia de etiqueta diferente. Agora já não usamos dois pares de luvas, já não usamos aquelas coisas que parecem astronautas (…). Conseguimos [ao anular procedimentos de antes] uma multiplicação da nossa atividade para dar resposta a uma fase claramente maior da Covid-19, mas as outras doenças não pararam", disse à agência Lusa, o diretor do maior serviço de Medicina Interna do país, Jorge Almeida.
Com 209 camas para doentes de todas as patologias, 11 em cuidados intermédios, nove dedicadas a AVC (Acidente Vascular Cerebral) e 32 no hospital de Valongo que também faz parte do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ), Jorge Almeida atualiza os números de internamento ao minuto.
"Ao contrário da outra vez [referindo-se à primeira vaga da Covid-19] não nos esgotamos no SARS-CoV–2. Vamos ter de nos esgotar nos dois lados e sabemos que temos de manter a capacidade de resposta. Não há nenhum português da região do nosso hospital que vai deixar de ser tratado. Isso asseguro desde já independente do cansaço das pessoas, independente de termos já bastantes profissionais de quarentena ou doentes", frisa.
Num tempo em que a pandemia obriga a adaptações de serviços, realocação de camas e redistribuição de profissionais, o plano do CHUSJ para o inverno começou a ser desenhado em maio.
Ainda que admitindo que fala em causa própria, Jorge Almeida diz "ter a certeza" de que o Hospital de São João está "melhor organizado do que qualquer outro", mas salvaguarda: "Nenhum hospital de organiza para além da sua capacidade".
"Este hospital, na primeira fase, esteve — com o Santo António e Braga — praticamente sozinho. Quando os outros se envolveram, já isto estava a resolver-se. Nesta fase estão todos envolvidos", refere o diretor que questionado sobre se o preocupa que a menor capacidade de outros hospitais recaia sobre o CHUSJ é direto.
"Claramente", diz Jorge Almeida, explicando que "a pressão já existe habitualmente" sem novo coronavírus porque o São João é "referência para uma franja significativa da população norte e para grande parte das patologias".
Ao lado, com os pés fora da enfermaria e sem o tal fato de astronauta vestido, ouve-se o médico Francisco de Carvalho Ferrão perguntar ao doente que na segunda-feira ocupava a cama 327 do serviço de Medicina Interna se tem condições para regressar a casa e permanecer isolado.
O paciente de 58 anos, internado devido a um AVC, podia receber alta, mas teria de cumprir quarentena em casa. "Ponha a máscara direita. Em casa não pode estar com ninguém pelo menos 14 dias", diz-lhe o médico.
Já a enfermeira chefe de Medicina Interna, Graça Silva, explica à Lusa o porquê daqueles conselhos estarem a ser passados em cima de um quadrado de papel que contém produto com ação desinfetante e não atrás das linhas que permanecem no chão do serviço.
"Os circuitos foram alterados. A experiência veio mostrar que alguns procedimentos não eram necessários. Isso equivale a menos recursos e equipamentos", descreve, mas deixando a nota de que "a pressão atual é grande".
Também a enfermeira chefe do serviço de Medicina Intensiva, Rosa Moreira, fala da "experiência acumulada" como "uma vantagem", mas alerta para o "cansaço já se faz notar".
"Uma das principais preocupações são sem dúvida os recursos humanos e tudo o que poderá vir a acontecer no futuro (…). Nas áreas que estão reservadas a doentes Covid, os profissionais estão muito bem preparados e muito protegidos", garante.
Rosa Moreira faz à Lusa o retrato de uma unidade instalada no piso 8 que era dedicada a cuidados intensivos para doentes neurocríticos, mas que a pandemia transformou em área exclusiva para doentes com infeção Covid-19 grave.
Quem a coordena é Nuno Príncipe, médico de Medicina Intensiva que trabalha no diz ser "o fim de linha".
Alerta que "apesar de já se saber muito mais do que na primeira onda ainda não se conhece integralmente este vírus" e que ainda que só uma percentagem de doentes com Covid-19 fique internado e uma menor percentagem necessite de cuidados intensivos", recusa responder à Lusa de forma matemática sobre tempos de internamento.
"O doente que esteve aqui internado menos tempo, esteve oito dias. Os doentes que são ventilados de forma invasiva ficam semanas na unidade. São internamentos bastante prolongados", refere, aproveitando o pretexto para reforçar mensagens sobre o comportamento da sociedade.
"Já sabemos que existem coisas que ajudam [a evitar o contágio]. Pedem-se meia dúzia de coisas que nem sempre são cumpridas pela população e nem às vezes pelos nossos líderes", lamenta Nuno Príncipe.
Já as enfermeiras chefes da Medicina Interna e da Medicina Intensiva desconstroem a ideia de que só os idosos sofrem com a Covid-19.
"Os jovens são aqueles que estão muitas vezes assintomáticos e levam a doença aos que têm maior risco", frisa Rosa Moreira, enquanto Graça Silva pede que "se evitem comezainas" e recorda que em pleno outubro, ainda longe do frio que causa muitas agudizações nos doentes crónicos, "a situação já é muito complicada".
A pandemia de Covid-19 já provocou mais de 1,1 milhões de mortos no mundo desde dezembro do ano passado, incluindo 2.371 em Portugal.
Na terça-feira o Hospital de São João tinha 95 doentes internados em enfermaria e 25 em cuidados intensivos.
Na chamada primeira vaga, e quando a atividade programada não urgente estava suspensa, este hospital chegou a acolher 140 doentes em enfermaria e 60 em cuidados intensivos.
Entretanto, o nível três do plano de contingência do CHUSJ, de um total de quatro patamares, foi ativado a 13 de outubro.
A pandemia de Covid-19 já provocou mais de 1,1 milhões de mortos no mundo desde dezembro do ano passado, incluindo 2.371 em Portugal.
Source: observador.pt
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