четверг, 1 октября 2020 г.

A cosa Bolsonaro

Os fatos da História não se repetem, mas rimam como os versos de um longo poema. Ouvi mais ou menos isto de meu amigo Sidney Chalhoub, prestigiado historiador e professor na Universidade de Harvard. Também li afirmação semelhante em uma das falas de Tia Lydia, a odiosa vilã dos romances "O conto da aia" e "Os testamentos", da canadense Margaret Atwood, que descreve os horrores de uma teocracia cristã fundamentalista imposta à força a alguns dos Estados Unidos.

Sem sombra de dúvida, a ascensão da extrema-direita no Brasil no rastro da Operação Lava Jato rima bastante com a acensão da extrema-direita na Itália na sequência da Operação Mani Pulite. E ambas rimam com as ascensões do fascismo e do nazismo na Europa dos anos 30.

Sob a "scusa" de que estava erradicando a corrupção no Estado, a Mani Pulite destruiu a elite política italiana com a ajuda dos meios de comunicação hegemônicos locais, contraditoriamente abrindo o caminho para que o corrupto, autoritário e imoral Silvio Berlusconi se tornasse primeiro-ministro da Itália. Estes fatos, que se sucederam no início dos anos 90, encontrariam rima perfeita no Brasil da segunda década do novo milênio, quando a Operação Lava Jato passou por cima do Estado democrático de direito para, com a cumplicidade dos meios de comunicação hegemônicos, acusar de corrupção uma parte da elite política brasileira e servir de base para que, contraditoriamente, o imoral, autoritário e corrupto Jair Bolsonaro se elegesse Presidente da República em 2018.

Pensando nessas rimas e após assistir à sucessão de mentiras, calúnias e difamações perpetradas por Bolsonaro contra os povos indígenas e quilombolas e contra os trabalhadores em seu discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), eu decidi também rimar minha reação a este fascismo mal-disfarçado com uma reação do passado recente. Lembrei-me, então, de um texto sobre Berlusconi escrito pelo português José Saramago — Prêmio Nobel de Literatura e uma das minhas grandes referências literárias — a pedido de «El País», que o publicou em 7 de junho de 2009 em sua edição espanhola.

Decidi revistar este texto de Saramago numa espécie de paráfrase do mesmo, preservando o máximo possível as palavras do mestre, já que seus sentimentos em relação a Berlusconi rimam bastante com os meus em relação a Bolsonaro. Em minha tradução do original em espanhol, optei em preservar a palavra "cosa" como escrita em italiano e espanhol, já que, desta forma, a ela se agrega o sentido que tem em "Cosa Nostra", a mais famosa máfia familiar italiana; e, além disso, a manutenção da palavra nesta grafia também serve de referência ao fato de a "famiglia" Bolsonaro ter vindo da Itália.

Eis minha rima:

A cosa Bolsonaro. Não vejo que outro nome poderia lhe dar. Uma cosa perigosamente parecida a um ser humano, que promove aglomerações e festas sob a pandemia e se comporta como se mandasse no país chamado Brasil. Esta cosa, esta doença, este vírus ameaça ser a morte moral do país de Machado de Assis se um vômito profundo não conseguir lhe arrancar da consciência dos brasileiros antes que o veneno acabe corroendo-lhes as veias e destroçando o coração de uma das mais ricas culturas latinoamericanas e afro-ameríndias.

Os valores básicos da convivência humana são pisoteados todos os dias pela pata viscosa da cosa Bolsonaro, que, entre seus múltiplos talentos, tem uma habilidade grotesca para abusar das palavras, pervertendo-lhes a intenção e o sentido, a começar por "social" e "liberal", que estão na sigla do partido com o qual assaltou ao poder, e passando pelas palavras "cristão" e Deus.

Chamo de delinquente a esta cosa e não me arrependo. Por razões de natureza semântica e social que outros poderiam explicar melhor que eu, o termo delinquente tem, na língua portuguesa falada no Brasil uma carga negativa muito mais forte do que em Portugal, onde se fala o mesmo idioma, porque, no Brasil, admiradores da cosa Bolsonaro costumam associá-la apenas aos pobres e aos pretos pobres em especial.

Para traduzir de forma clara e contundente o que penso da cosa Bolsonaro utilizo o termo na concepção que a língua de José Saramago vem lhe dando habitualmente, com a certeza de que este já a usou para qualificar cosas semelhantes. Delinquência significa, de acordo com os dicionários e a prática corrente da comunicação, "ato de cometer delitos, desobedecer leis e padrões morais". A definição cabe na cosa Bolsonaro sem uma ruga, sem aperto, ao ponto de lhe parecer mais uma segunda pele que a roupa com que se veste.

Há anos a cosa Bolsonaro vem cometendo delitos de variada — ainda que sempre demonstrada — gravidade. Para completar, não é só que desobedeça as leis, mas debocha abertamente destas, sempre para salvaguardar os interesses privados de sua família e de empresários e políticos cúmplices, como os que apareceram ao seu lado rindo de suas insinuações de duplo sentido dirigidas a uma menina de dez anos. E quanto aos padrões morais, nem vale a pena falar, não há quem não saiba no Brasil e no mundo que a cosa Bolsonaro há muito tempo é abjeta por causa de sua homofobia, racismo, machismo e misoginia.

Este é o presidente do Brasil na atualidade. Esta é a cosa que a maioria dos votantes brasileiros elegeram como modelo em 2018. Este é o caminho da ruína a que, rasteiramente, estão sendo levados os valores de liberdade e dignidade que impregnaram a música de Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, para citarmos os três mais conhecidos, e as ações políticas de Ulisses Guimarães e Dilma Rousseff, dois dos que fizeram da luta pela reconquista da democracia no Brasil um exemplo para toda a América Latina. É isto que a cosa Bolsonaro quer jogar na lata do lixo da História. Os brasileiros democratas permitirão?

Source: expresso.pt

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